Em noites muito frias, quando a temperatura do ar chega a zero, uma fina camada branca de orvalho congelado recobre a relva. Geadas assim, como as vistas no Brasil recentemente, podem decidir o destino de plantas.
Para fazendeiros, não é um prognóstico bom.
“Foi difícil ir lá nos dias seguintes acompanhar o que estava acontecendo, ver como a geada havia atingido nossos canaviais”, diz a produtora rural Christina Pacheco, presidente da Associação de Fornecedores de Capivari, São Paulo, onde ela é proprietária de uma fazenda de cana-de-açúcar de 320 hectares.
Isso porque o gelo pode congelar e matar a planta por dentro. E não afeta só a safra atual; a seguinte também pode ficar comprometida.
Foram três ondas de geadas neste inverno brasileiro logo após um longo e extremo período de seca. Péssima notícia para os plantadores de cana-de-açúcar e de café. Péssima notícia para o bolso dos consumidores também.
“A gente nunca tinha visto geada assim nos últimos 40 anos de história de cana nessa propriedade”, diz Pacheco. “Com as geadas, as plantas foram para a estaca zero.”
Períodos quentes e secos e eventos extremos, como este frio, fazem parte de previsões científicas do clima como consequência do aquecimento do planeta por ação humana, como se viu no relatório divulgado na semana passada pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre o Clima da ONU).
A extrema seca desde o ano passado na Bacia do Paraná – nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás – já havia afetado as plantações.
Depois, em um espaço de 30 dias em junho e julho, três ondas diferentes de geadas arremataram o que já era uma uma conjectura ruim. Plantações de cana-de-açúcar e de café no centro-sul do Brasil foram afetadas.
A menor oferta significa que o preço dos produtos sobe – e a diferença será tão grande que dificilmente não será repassada para os consumidores.
Para alguns produtores, o preço alto acabará compensando as perdas. Pequenos produtores que dependem só da plantação e produtores que mais tiveram plantações afetadas, contudo, terão perdas significativas.
Safras de cana-de-açúcar
A cana cresce com temperatura, umidade e calor, explica Denis Arroyo Alves, diretor executivo da Orplana (Organização de Associações de Produtores de Cana do Brasil).
“Quando você tem temperaturas baixas, o crescimento é interrompido”, explica ele.
“A alternativa das empresas é colher essa cana o mais rápido possível independentemente se estava no estágio ou não de colheita”, diz o diretor técnico da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), Antonio de Padua Rodrigues.
Isso significa que a cana estará menor, com menos quantidade de açúcar, algo pior para o produtor – as usinas fazem pagamento de acordo com a quantidade de açúcar que conseguem transformar da cana.
Depois de cortar a cana, com a umidade que ainda existe no solo, ela rebrota. A geada também atingiu áreas que haviam sido recém-colhidas. Significa que produtores vão precisar esperar para ver se elas vão voltar a crescer.
É como se a cana começasse do zero, perdendo meses de crescimento e afetando até a safra seguinte.
“Eu considero como se fosse um corte. Em um mês, cortou três vezes”, diz Cesar Mikishi Uemura, de 57 anos, proprietário de uma fazenda de cana-de-açúcar de 500 hectares em Guaíra, interior de São Paulo.
Como Pacheco e outros fazendeiros, ele repete que nunca havia passado por situação semelhante. “Estou há mais de 30 anos na lavoura. A gente fica com medo porque nunca viu três geadas em um ano. Se não brotar, como vai ser?”
A plantação fica como se alguém tivesse “tacado um fogo lá”, descreve Uemura. De fato, as fotos de sua fazenda mostram uma plantação que aparenta queimada, com o verde escurecido, seco, tostado.
O engenheiro agrônomo Fernando Paiva Oliveira, de 60 anos, proprietário de uma fazenda de cana-de-açúcar em Barretos, interior de São Paulo, também repete: “Sou engenheiro agrônomo há 38 anos. Nunca vi o efeito das geadas como esse ano. É de espantar. Nessa magnitude, nunca havia acontecido”
A conta, diz ele, não vai fechar. Ele já planeja injetar mais recursos na fazenda para compensar as perdas.
Segundo o meteorologista da Climatempo Celso Oliveira, três ondas de frio não é algo que acontece geralmente, embora elas não tenham batido as mais geladas da história.
Mas a queda de temperatura não havia sido prevista nas simulações de clima de longo prazo. “O frio começou a aparecer mais claramente nas previsões com 15, 10 dias de antecedência”, diz.
Agora, diz ele, ainda há potencial para geadas, mas só para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. “A chance de geada danosa para as culturas de café e cana é menor. Estamos entrando em um período em que os dias estão ficando mais longos. Teria de haver uma onda de frio descomunal para derrubar a temperatura para um ponto de geada.”
Preço do açúcar
Os contratos negociados nas bolsas de Nova York e Londres servem de referência para a precificação do açúcar no mundo inteiro.
À medida que as situações ruins foram acontecendo, o mercado foi precificando o açúcar, diz Plinio Nastari, presidente da consultoria agrícola Datagro. “Estava seco, ia ter menos oferta. Continuou seco, menos oferta ainda. Veio a geada, menos ainda.”
Os preços, segundo ele, estão muito elevados. “O preço do açúcar que normalmente é R$ 60, R$ 70 a saca, nesse momento está R$ 115. E o preço do etanol, que normalmente é de R$ 2,15 por litro ao produtor, está negociado a R$ 3,10.”
E isso em um ano de maior demanda de combustível por causa da recuperação de consumo e mobilidade.
Até chegar ao consumidor, a saca de açúcar de 60 kg que sai da usina passa por uma cadeia com vários custos diferentes.
Para Padua, da Unica, a quebra de safra no Brasil fez com que os preços subissem, o que, aliado ao real desvalorizado, de fato trará um impacto para o consumidor.
Segundo ele, o Brasil vai passar de 605 milhões de toneladas de cana produzidas na safra passada para 530 milhões de toneladas nesta safra. O país é o maior exportador de açúcar do mundo, seguido da Índia e da Tailândia. Em relação ao etanol, fica atrás apenas dos Estados Unidos.
Oliveira, o engenheiro agrônomo dono da fazenda em Barretos, diz que “vai bater na população, queira ou não queira”.
Café
Com o café, a situação tampouco foi boa. O café é colhido em meados do ano. Pouco depois da colheita, quando começam as chuvas no verão, surgem as primeiras flores, que depois vão virar os frutos.
As lavouras que foram muito atingidas perderam todas as folhas. Sem elas, não podem fazer fotossíntese e crescer. Isso quando a geada não matou a planta completamente.
De qualquer forma, só na época das chuvas, a partir de setembro, é que os produtores poderão ver como as plantas vão reagir e mensurar o tamanho do estrago.
“O clima seco também já traria algum tipo de reflexo para a próxima colheita. Se já não bastasse o clima seco, vem a geada e atinge regiões importantes”, diz Renato Garcia Ribeiro, pesquisador da área de café do Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), da Esalq/USP.
“As lavouras estão produzindo menos. Então o mercado já prevê menor oferta de café e reflete isso.”
O preço do café também é regulado pela Bolsa de Nova York. Segundo o indicador de preços de café Arábica do Cepea/Esalq, houve um crescimento de quase 70% no preço da saca de café de 60kg do ano passado para agosto deste ano, sem considerar a inflação.
“Pode ser que a indústria absorva a margem do aumento de valor do insumo, mas não vai absorver tudo. Vai repassar”, diz Ribeiro.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic), a quebra de safra, o câmbio em alta, o aumento no custo dos insumos e as questões climáticas devem provocar um aumento de 35% a 40% no preço do produto nas prateleiras até o final de setembro – o maior registrado há 25 anos no país.
O Brasil é segundo maior consumidor de café no mundo e o principal exportador. Vietnã e Colômbia vêm atrás.
Mas com a seca e geadas no Brasil, protestos políticos na Colômbia que atrasaram exportações, além do transporte mais caro de commodities, com fluxo de navios e contêineres mais difícil por causa da pandemia de covid-19, os preços do café devem ficar lá em cima também para outros mercados consumidores do mundo.
Fonte: G1.