Uma decisão da Justiça do Distrito Federal determinou a penhora do carro de uma mãe de criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas um caso semelhante já foi analisado de outra forma, no Rio Grande do Sul, levantando uma polêmica sobre os direitos de famílias de pessoas com deficiência. A mãe recorreu e agora luta por uma nova legislação que traga proteção jurídica em situações como essa.
Alexandra Lobo, empresária de Brasília, é mãe de Lucas, uma criança de 10 anos diagnosticada com TEA. Ela usa o carro para levar o filho à escola e a outras atividades fundamentais para o desenvolvimento do garoto, como a terapia. Mas, em decisão recente do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), ela recebeu com surpresa a determinação da penhora do veículo.
O processo é longo, desde 2018, e cita uma dívida empresarial, questionada por Alexandra. O último movimento obriga Alexandra a indicar o endereço onde está o carro, até a próxima segunda-feira (29/1). A defesa dela, no entanto, cita um entendimento distinto de uma situação semelhante avaliada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) como argumento.
“Bem torna-se impenhorável”
Em 2019, a 23ª Câmara Cível do TJRS determinou que a Justiça não poderia permitir a penhora do único carro da família quando ele fosse usado para atender necessidades de acesso à saúde e de ensino de uma criança autista. A decisão ressaltou o texto da Constituição que diz que o Estado e a família devem dar prioridade absoluta à criança, sobretudo àquelas com necessidades especiais e, em particular, as diagnosticadas com TEA, como prevê a Lei 12.764/12, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
“É sabido que as pessoas com deficiência enfrentam quotidianamente um sem-número de obstáculos para o desempenho de atividades que vão das mais simples às essenciais à caracterização de uma vida digna. Situações como a retratada no documento […] dão uma exata dimensão do enfrentamento diário e das necessidades, dentre elas o de deslocamento da mãe e cuidadora”, afirmou o relator, desembargador Cláudio Luís Martinewski.
A decisão conclui que, “comprovado que o único veículo automotor da unidade familiar se reveste de caráter essencial à atenção integral das necessidades”, sendo usado para fins de saúde e de acesso à educação da criança com autismo, “tal bem torna-se impenhorável”. Mas, no caso de Brasília, a família de Lucas encontrou um outro entendimento.
“Não há previsão de impenhorabilidade”
No DF, o juiz de Direito Substituto do TJDFT Arthur Lachter chegou a dizer que as necessidades da família do garoto com TEA são dignas de “sensibilização”, mas entendeu que “não há tal previsão de impenhorabilidade”. Para ele, não há, na legislação atual, dispositivos necessários para que o carro não seja penhorado.
Em decisão contra o recurso apresentado pela defesa da família, ele alega que “a jurisprudência de outros tribunais regionais, embora possam servir como outras fontes de direito, não são vinculantes”.
“A tese da impenhorabilidade do automóvel, trazida pela executada, não encontra respaldo no art. 833 do CPC [Código de Processo Civil]. Com efeito, ainda que a necessidade do uso do veículo para o transporte de filho portador de TEA seja digna de sensibilização, é na lei que os critérios devem ser encontrados, por questão de submissão ao sistema democrático. E, porque não há tal previsão de impenhorabilidade, rejeito a impugnação prévia”, avaliou Lachter.
Luta por nova legislação
Alexandra e Celso Quida, pais de Lucas, temem enfrentar ainda mais dificuldades no dia a dia do filho sem o único carro da família. “Meu objetivo é que isso se torne lei, que o carro de uma mãe autista não possa ser penhorado. Eu preciso dar atenção maior ao meu filho. Ele faz terapia, tem aula particular, estuda em uma escola que fica no final da Asa Norte, enquanto moramos em Águas Claras”, cita ela.
A mãe de Lucas lembra que uma das épocas de maior desenvolvimento do filho foi quando ela deixou o trabalho e teve dedicação total a ele. “Foi fundamental. O sonho de qualquer mãe e pai é que o filho se desenvolva. Teve época em que ele fazia aulas de dança, piano e canto. Os especialistas ficaram impressionados.”
Atualmente, segundo a legislação específica sobre penhora, um veículo automotor só entra em condição de impenhorabilidade quando se caracteriza como “instrumento necessário ao exercício da profissão do executado”.
Na decisão do TJRS, porém, a Justiça entendeu que “a Constituição Federal elenca dentre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e afirma que é responsabilidade da família e do próprio Estado assegurá-la, com prioridade absoluta, à criança (CF, art. 227), sobretudo se vulneráveis por serem portadoras de necessidades especiais (Lei nº 13.146/15, art. 10), em especial a portadora do Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764/12, art. 3º, I)”.